A gota é uma doença reumática inflamatória resultante da deposição de cristais de monourato de sódio (forma de acumulação de ácido úrico). É mais prevalente em homens, sendo muito rara em mulheres antes da menopausa.

A gota resulta da deposição de cristais de monourato de sódio (forma de acumulação de ácido úrico) nas articulações, mas também em outras localizações. Este fenómeno ocorre quando os níveis de ácido úrico no sangue se encontram cronicamente elevados acima de 6,8 mg/dL (hiperuricemia, o principal fator de risco para a gota) e perante condições locais que o favoreçam (como o grau de hidratação, pH e temperatura cutânea).

Outros fatores de risco a considerar são: fatores genéticos, dietéticos (ingestão de álcool ou alimentos ricos em purinas, como marisco, carnes e vísceras), comorbilidades (incluindo síndrome metabólica, obesidade, hipertensão arterial, diabetes, psoríase…) e a utilização de alguns fármacos (como os diuréticos tiazídicos que interferem com a excreção renal de ácido úrico).

Após um período prolongado de hiperuricemia assintomática, começam a surgir manifestações articulares cuja localização e evolução são variáveis

A gota evolui inicialmente com uma fase aguda e intermitente, ou seja, com crises de inflamação articular (artrite) intercaladas com períodos assintomáticos. A idade para a primeira crise oscila habitualmente entre os 40 e os 60 anos nos homens e após os 60 anos nas mulheres. Os períodos de crise podem ser despoletados por fatores externos, como traumatismo local, fármacos e ingestão de alimentos ricos em purinas (como marisco, carnes e vísceras) e bebidas alcoólicas (particularmente cerveja e bebidas brancas), e caracterizam-se pelo início rápido (6 a 12 horas) de sinais inflamatórios exuberantes (dor, aumento da temperatura local, rubor e tumefação) na articulação envolvida. Habitualmente nas fases iniciais da doença apenas uma articulação é afetada, sendo a localização mais típica nos membros inferiores, particularmente no 1º dedo do pé (podagra), tornozelos e joelhos. As articulações dos membros superiores (mãos, punhos e cotovelos) podem ser atingidas mais rara e tardiamente. Durante a crise, os doentes podem igualmente referir sintomas inflamatórios gerais (sistémicos) como febre. As crises podem ser auto-limitadas (regressão em 1 a 2 semanas), mas o início de terapêutica adequada visa encurtar a sua duração.

Com a progressão para a cronicidade, as crises tendem a atingir mais articulações e a ser mais frequentes e prolongadas, com períodos assintomáticos mais curtos (até deixarem de existir períodos livres de sintomas). Estabelece-se assim uma fase de artrite gotosa crónica, em que as articulações envolvidas estão permanentemente dolorosas e inflamadas. Refere-se igualmente o estabelecimento de deformação articular resultante da destruição da estrutura da articulação pela persistência do processo inflamatório, que contribui para dor e incapacidade constantes.

Quando os níveis de ácido úrico se mantêm cronicamente elevados, os cristais de monourato de sódio (forma de acumulação de ácido úrico) podem acumular-se também na pele e tecidos moles peri-articulares, formando os chamados “tofos gotosos”. Estes localizam-se tipicamente nas extremidades (mãos, pés e pavilhões auriculares), onde as condições locais e as temperaturas mais baixas favorecem a cristalização de ácido úrico, e contribuem para a incapacidade atribuída à doença.

diagnóstico definitivo de gota é facilitado pela identificação de cristais de monourato de sódio (MUS – forma de acumulação de ácido úrico) no líquido sinovial ou em aspirado de tofos gotosos. Nesse sentido, as recomendações internacionais sugerem a procura sistemática de cristais de MUS no líquido sinovial obtido a partir de articulações inflamadas em doentes ainda sem diagnóstico. Além disso, a identificação destes cristais no líquido sinovial durante períodos assintomáticos pode igualmente possibilitar o diagnóstico. O diagnóstico presuntivo pode ser possível com base na clínica em doentes com hiperuricemia, sinais e sintomas característicos (presença de artrite e tofos) e resposta prévia favorável a fármacos eficazes nesta doença.

Os exames complementares têm um papel limitado mas, ainda assim, têm alguma utilidade para o diagnóstico diferencial com outras patologias. Por exemplo, o exame microbiológico do líquido sinovial permite a distinção entre uma crise de gota e uma artrite infeciosa.

Por serem habitualmente inespecíficos em fases iniciais, os achados radiográficos não permitem o diagnóstico de gota inicial ou aguda. No entanto, em situações de doença mais avançada, podem documentar erosões com margens escleróticas. A ecografia articular pode identificar inflamação (derrame articular ou Doppler positivo), lesões de doença evoluída (erosões intra-articulares e tofos) ou sinais ecográficos sugestivos de acumulação de cristais (sinal de duplo contorno). A Tomografia Computorizada e a Ressonância Magnética não são habitualmente necessárias, embora permitam visualizar tofos gotosos e erosões ósseas.

Os níveis sanguíneos de ácido úrico não determinam (nem excluem) o diagnóstico de gota, pois nem todos os indivíduos com hiperuricemia desenvolverão gota e os níveis de ácido úrico podem estar enganadoramente baixos durante uma crise. São porém importantes para monitorizar a evolução clínica de uma gota crónica, permitindo ajustar a dose de medicação em função dos valores de ácido úrico e da evolução dos sintomas.

O tratamento da gota pode ser dividido em duas fases distintas:

– Terapêutica da crise de artrite aguda – apesar das crises de gota desaparecerem espontaneamente ao fim de cerca de 1 a 2 semanas, a terapêutica da crise deve ser instituída para aliviar de forma rápida os seus sinais e sintomas. Seja qual for a localização da artrite, são habitualmente utilizados anti-inflamatórios não esteróides e doses baixas de colquicina, isolados ou em combinação. No caso de intolerância ou contraindicação a algum destes fármacos, doses baixas de corticosteróides (como a prednisolona) podem ser também utilizados. Se o profissional de saúde tiver experiência, pode ainda propor uma infiltração com corticosteróide na articulação inflamada com vista a aliviar rapidamente os sintomas.

– Terapêutica para baixar o ácido úrico – sendo a gota causada pela hiperuricemia crónica, a redução dos seus valores através de fármacos hipouricemiantes é fundamental para prevenir futuras crises de artrite e modificar a evolução natural da doença para destruição articular e incapacidade. Em Portugal, existe apenas disponível o alopurinol, aguardando-se a aprovação e comercialização de um novo medicamento, o febuxostato. O tratamento com alopurinol deve ser apenas iniciado após o desaparecimento da crise de artrite aguda, mas se o doente já se encontrava a tomar alopurinol previamente este não deve ser interrompido durante a crise. Quando se inicia alopurinol pela primeira vez deve ser administrado concomitantemente um anti-inflamatório não esteróide, colquicina em dose baixa ou corticosteróide em dose baixa durante 6 meses, já que durante o início da terapêutica hipouricemiante há maior risco de novas crises. O tratamento é frequentemente para toda a vida e o valor de ácido úrico a atingir no sangue é de menos de 6 mg/dL e, nos doentes com tofos gotosos, o valor é de menos de 5 mg/dL.

A prevenção mais eficaz das crises de gota é feita através da correção da hiperuricemia com o alopurinol visando atingir menos de 6 mg/dL e, nos doentes com tofos gotosos, menos de 5 mg/dL. Um estilo de vida saudável é igualmente recomendado, devendo incluir atividade física regular, redução (mas não proibição) de alimentos ricos em purinas (carnes, vísceras, marisco e alguns peixes como salmão, truta e sardinhas) e redução do consumo alcoólico, especialmente de cerveja e bebidas brancas. O consumo de refrigerantes e sumos de fruta deve também ser evitado. Alguns medicamentos, como os diuréticos tiazídicos (hidroclorotiazida, metolazona ou clortalidona) são conhecidos por aumentar o ácido úrico e devem por isso ser evitados ou substituídos. Por outro lado, alguns medicamentos usados para a hipertensão arterial e para as dislipidémias ajudam na descida do ácido úrico sanguíneo, e sendo estas condições frequentes nos doentes com gota, fármacos como o losartan na hipertensão e o fenofibrato no excesso de triglicéridos poderão representar uma mais-valia na terapêutica hipouricemiante.

Para a prevenção de crises de gota e das suas potenciais consequências é fundamental a educação e sensibilização dos doentes para a mudança nos estilos de vida e adesão aos tratamentos hipouricemiantes. A prática de exercício físico regular, uma alimentação regrada e o cumprimento da toma de medicamentos crónicos são os meios de evitar as consequências da gota a longo prazo.

A gota é uma doença frequentemente subvalorizada pelo fato das suas crises de artrite, apesar de dolorosas e incapacitantes, serem de curta duração e acontecerem esporadicamente numa fase inicial. Contudo, se a hiperuricemia não for corrigida, podem advir graves consequências:

– As crises tornam-se cada vez mais frequentes e atingem cada vez mais articulações, até que o doente passa a ter dor, inflamação articular e incapacidade permanentes, consequência da destruição articular e deformidade.

– Tofos gotosos podem atingir grandes dimensões e agravar a incapacidade articular, infetar e comprimir nervos ou vasos.

– A acumulação renal de ácido úrico leva a insuficiência renal e cálculos renais, com risco de morte aumentado.

Vários estudos revelam também que doentes com gota têm mais doença coronária e morrem mais devido a enfartes do miocárdio do que indivíduos sem gota. Como tal, é igualmente importante manter controlados os fatores de risco cardiovasculares como a diabetes, hipertensão arterial ou dislipidémia.

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Autores: Dr. Filipe Araújo, Dr.ª Joana Borges

Revisores: Dr. Augusto Faustino, Dr.ª Patrícia Nero